sexta-feira, 25 de maio de 2012

A promiscuidade paradigmática da neurociência

Autor: Daniel Gontijo

Como a neurociência é um campo interdisciplinar, sua pluralidade paradigmática não é coisa de se espantar. Contudo, há paradigmas que parecem ser mais permeáveis ou ajustáveis a mais níveis de análise. Pode-se, por exemplo, encarar os objetos e eventos relacionados ao comportamento, à fisiologia e até mesmo à bioquímica à luz do cognitivismo. O cérebro poderia ser concebido como uma máquina computacional (que computa ou processa informações), tendo a "codificação", o "armazenamento" e a "recuperação" de informações como alguns de seus processos. Um paradigma abarca não só conceitos e uma teoria, mas também crenças, valores e técnicas particulares. Como venho percebendo, o cognitivismo figura como o paradigma psicológico/comportamental predileto dos neurocientistas. Ainda assim, o mundo das informações parece não ter conseguido abraçar todo o campo das redes neurais, e o linguajar da comunidade neurocientífica procura compensá-lo de outras maneiras.

No meu ponto de vista, parte da promiscuidade da neurociência é justificada pelas lacunas deixadas por um paradigma. Quando não se consegue descrever ou explicar certos fenômenos pelos moldes tradicionais, conceitos e processos de paradigmas concorrentes são então recrutados. Para fazer uma analogia, as pessoas tendem a dar explicações sobrenaturais a eventos que não podem compreender sob uma perspectiva naturalista/fisicalista. Quando os dados do mundo natural nos faltam, entidades e forças sobrenaturais assumem o centro do palco. É por isso que, em vários momentos, descrições religiosas e científicas aparecem não como rivais ou concorrentes, mas como complementares -- o que pode ser muito problemático.

Uma vez que eu tenho muito interesse pela neurociência comportamental, que aborda questões como o pensar, o sentir e o aprender, tenho estado sensível a esse discurso promíscuo. Mesmo que haja pesquisadores que adotam exclusivamente um ou outro paradigma (como o cognitivista, o behaviorista ou o psicanalítico), já acompanhei várias apresentações e li alguns artigos em que as coisas se misturavam bem (mal, na verdade). Durante algumas aulas que tive na neurociência (tanto na especialização como, atualmente, no mestrado), distintas explicações dos professores eram compostas por conceitos e processos de distintos paradigmas. "Consolidação mnemônica", do cognitivismo, e "condicionamento", do behaviorismo, são conceitos típicos que vêm e vão conforme o contexto. Ao se tratar dos determinantes dos reflexos e da percepção de objetos simples do mundo, fala-se de "estímulos"; quando se atenta aos eventos corticais, "informações". Ademais, já vi o "inconsciente" e as "repressões mnemônicas" postulados por Freud se entrosarem com o "processamento paralelo" do cognitivismo. É uma salada de frutas paradigmática que, aos mais atentos e filosoficamente rigorosos, dá azia!


Um outro fator que deve contribuir para essa promiscuidade paradigmática deve ser a ignorância dos próprios pesquisadores. As "lacunas" a que aludi anteriormente podem pertencer não ao paradigma, mas aos indivíduos que se apropriam dele. Em um seminário que acompanhei recentemente, discutia-se se a mudança de comportamento de um rato seria explicada por "contingências de reforço" ou por sua "intencionalidade". A gafe está em se supor que essas coisas se excluem. Se os pesquisadores conhecessem minimamente o behaviorismo radical, entenderiam que o comportamento voluntário/intencional é produzido por contingências reforçadoras. Algo similar ocorreu no início de um curso de neurofisiologia de que participei, em que um dos professores afirmou que, além dos condicionamentos clássico e operante, a aprendizagem seria derivada de aspectos declarativos e procedurais da memória. Mas as memórias declarativa e procedural são tipos ou classes de eventos, as "evocações", cuja origem pode ser explicada por processos de condicionamento. Se, por um lado, o behaviorismo não prima pela distinção entre o "responder procedural" e o "responder declarativo", não vejo como o cognitivismo explica como é que essas evocações são adquiridas. No final das contas, este último caso ilustra uma mistura de lacunas paradigmáticas com lacunas do pesquisador.

Mas não podemos ser muito duros com os neurocientistas. Em primeiro lugar, a própria psicologia carece de um paradigma hegemônico. A neurociência comportamental precisa recorrer aos modelos que temos para teorizar acerca dos fenômenos a que estão interessados. Quero crer, pois, que parte da responsabilidade pela referida promiscuidade é nossa, dos psicólogos. O problema é que parece haver poucos teóricos interessados em debater a pluralidade da psicologia, e muito menos os que se interessam em estabelecer um diálogo com a neurociência. Se a redução da psicologia às ciências do sistema nervoso é uma proposta ingenuamente presunçosa, a alergia que os psicólogos têm ao tecido neural pode prestar um desserviço ao aprimoramento de seu próprio campo. Em um mundo marcado pela interdisciplinaridade, intuo que os mais adaptados serão os que se arriscarem a se envolver com os cientistas do laboratório vizinho. Com esse intercâmbio de ideias, perguntas de um nível podem ser lançadas ao outro nível, e melhores modelos e paradigmas poderão ser gradativamente engendrados e, com efeito, selecionados. É possível que daí, mas não só por aí, uma psicologia melhor fundamentada e reconhecida poderá dar o ar da graça. 

Psicanalistas e, em especial, behavioristas e cognitivistas, que tal convidarem aquele cara de jaleco, com quem vocês sempre trombam pelos corredores, para tomar um café?

Dois cérebros cafeinados pensam melhor do que um.

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