Autor: Vinícius Garcia
O texto abaixo foi redigido como esclarecimento aos pais de uma criança autista, cuja mãe era psicóloga e afeita à psicanálise. Baseado em citações de Freud presentes na excelente monografia de autoria de Pedro Sampaio - Psicanálise e Behaviorismo Radical: um paralelo epistemológico -, trata-se de um texto que sintetiza didaticamente informações históricas importantes que possivelmente se relacionam com o atual embate epistemológico entre psicanalistas e analistas do comportamento no campo do tratamento do autismo.
O texto abaixo foi redigido como esclarecimento aos pais de uma criança autista, cuja mãe era psicóloga e afeita à psicanálise. Baseado em citações de Freud presentes na excelente monografia de autoria de Pedro Sampaio - Psicanálise e Behaviorismo Radical: um paralelo epistemológico -, trata-se de um texto que sintetiza didaticamente informações históricas importantes que possivelmente se relacionam com o atual embate epistemológico entre psicanalistas e analistas do comportamento no campo do tratamento do autismo.
B. F. Skinner, cientista e autor que
aprumou o behaviorismo para a investigação também de fenômenos como
sentimentos e pensamentos, acessíveis por meio da introspecção e de
relatos verbais, cita Freud diversas vezes ao longo de toda a sua obra.
As citações de Skinner a Freud geralmente são acompanhadas por
redescrições em termos analítico-comportamentais de descrições
psicanalíticas de fenômenos. Um bom leitor que estude a obra dos dois
autores constatará que não há incompatibilidade ou impossibilidade
absoluta de traduções interconceituais entre a epistemologia da
psicanálise de Freud e a epistemologia do behaviorismo de Skinner.
O behaviorismo conhecido por Freud no início do séc. XX era sustentado
por cientistas que muitas vezes negavam a possibilidade de qualquer
estudo científico de fenômenos por eles considerados como
não-observáveis. Era uma postura cientificamente ingênua, e que leva,
ainda hoje, pessoas erroneamente a classificarem o behaviorismo
pós-skinneriano como atrelado ao positivismo de Auguste Comte, que
defendia, entre outras exigências, que necessariamente deveria haver
concordância entre dois ou mais observadores sobre um mesmo fenômeno
para que se pudesse validar qualquer hipótese a seu respeito.
Freud descreveu o que chamou de inconsciente representando-o por meio
de um “aparelho psíquico” composto por componentes que ele chamou de
ego, Id, superego e pulsões. Chamou tais conceitos de “metáforas
didáticas”, que possivelmente seriam abandonadas à medida que novas
contribuições científicas surgissem. Tais conceitos foram utilizados,
segundo o próprio Freud, para teorizar a respeito de algo que ele intuía
ser o início de uma nova “ciência natural”. Ele afirmou por várias
vezes, sendo a última delas em 1937, dois anos antes de vir a falecer,
que pretendia que a psicanálise fosse uma “ciência natural”, ou seja,
uma ciência que descrevesse fenômenos que ocorrem na natureza, e não
alguma filosofia metafísica ou coisa do gênero. Chegou a romper com um
amigo de longa data e “discípulo”, C. G. Jung, que propusera
aproximações metafísicas entre a psicanálise e o que pareciam ser
teorias esotéricas. Não há dúvidas de que Freud se propunha a iniciar a
elaboração de um repertório descritivo científico sobre fenômenos
naturais que ele julgava importante que fossem descritos, ainda que com o
auxílio de conceitos que ele chamou de “andaimes intelectuais”, a
serem, talvez, posteriormente descartados. Com base em Darwin, Freud
propunha que as características biológicas humanas não haviam sido
modificadas no mesmo ritmo em que as culturas humanas haviam surgido e
se desenvolvido, e que o animal humano sofreria ao nascer e ter de se
adaptar à cultura vigente.
As investigações de Skinner sobre
o comportamento de animais humanos e não humanos surgem em um momento
em que já se percebia claramente, mesmo entre aqueles que se declaravam
behavioristas, que havia excessos naquilo que se julgava ser um
necessário rigor com relação à produção científica sobre o comportamento
humano. Via-se que tais excessos engessavam o avanço da compreensão
científica de fenômenos comportamentais importantes até então ainda
pouco explorados. O estudo científico das chamadas ações reflexas havia
sido muito alardeado, mas não fornecia bases sólidas para teorizações
sobre comportamentos então chamados de voluntários. Estes permaneciam
como uma lacuna a ser preenchida. O russo I. P. Pavlov havia sido
laureado com o prêmio Nobel, em 1904, pela descoberta do que chamara de
“estímulo condicionado”. Tal descoberta fez com que muitos voltassem
atenções exclusivas para um fenômeno conhecido como pareamento de
estímulos.
Aqui é necessário situar brevemente a importante
descoberta de Pavlov. O fisiologista russo fazia experimentos sobre o
sistema digestivo de cães quando notou algo que lhe pareceu digno de
nota. Ele havia colocado uma cânula nas glândulas salivares do cão
experimental para medir de modo preciso a excreção de saliva ao longo
das situações experimentais. No entanto, percebeu um acaso importante: o
cão salivava sempre que o cientista entrava no laboratório. Pavlov
aventou a hipótese de que os sons de seus passos eliciavam o reflexo de
salivação do cão, uma vez que seus passos haviam sido anteriormente
pareados com apresentações de comida. Testou então essa hipótese. Soou
um metrônomo e observou que não havia qualquer resposta de salivação do
cão. Pareou então o som do metrônomo com a apresentação de comida e
repetiu o procedimento por algumas vezes. Notou, então, que o cão
passara a salivar logo que ouvia o som do metrônomo.
Bom... O
que isso teria a ver com Freud e Skinner? Muita coisa, segundo veremos.
Tanto Freud como Skinner reconhecem a procedência da não ruptura entre a
espécie humana e outras espécies não humanas. Os dois tomam como base
as observações de Darwin quanto à seleção natural. Muito do que se
aplica à compreensão do comportamento de animais não-humanos aplica-se
também à compreensão de comportamentos de animais humanos. Freud chega a
aventar a hipótese de que é possível que seu “quadro esquemático geral
de aparelho psíquico” se aplique também a animais não humanos “que se
assemelhem mentalmente ao homem” e tenham “um longo período de
dependência na infância”, segundo suas próprias palavras, aqui colocadas
entre aspas.
Skinner dirá que o que nos acontece nos
modifica, modificando, assim, também os modos como respondemos ao mundo,
ou como o mundo controla nosso responder. Se eu passar por você na rua
amanhã, poderei olhar para você, mas provavelmente passarei direto sem
lhe cumprimentar. No entanto, se eu trocar poucas palavras frente a
frente com você hoje, é bem provável que eu lhe diga um “oi” ao avistar
seu rosto amanhã. O estímulo visual “seu rosto” controlará meu responder
de um modo diferente de como controlava antes. Os contextos e
conseqüências de nossas ações nos modificam, aumentando ou diminuindo a
probabilidade de voltarmos a agir dos modos como agimos. Somos capazes
de descrever muito pouco do que nos acontece e nos modifica. O que
pensamos, sentimos, falamos e fazemos é produto de modificações
ocorridas em nossos organismos em contextos diversos de nossas histórias
de vida, ainda que muitas vezes não sejamos capazes de descrever como
se deram tais modificações ou como foram modificados os modos como
respondemos ao mundo. A teoria freudiana do inconsciente condiz com essa
descrição de Skinner sobre o comportamento dos organismos. O que se faz
na psicanálise freudiana não é mais do que levar a pessoa a descrever o
que lhe aconteceu e acontece, de modo a fornecer bases para que ela
planeje de modo mais efetivo o que lhe acontecerá. Em certa medida, o
inconsciente proposto por Freud encontra em Skinner uma descrição
coerente e não internalizada, como era o caso do “aparelho psíquico”
freudiano, mas relacional.
Os conceitos freudianos de Id,
ego e superego encontram analogias nos conceitos de filogênese,
ontogênese e cultura utilizados por Skinner. Somos uma espécie animal,
e, como as demais espécies animais, tivemos características anatômicas e
fisiológicas selecionadas em contingências de sobrevivência ocorridas
com nossos ancestrais biológicos, produzindo sensibilidades específicas a
estimulações específicas. Na ontogênese (história individual),
contingências de reforçamento (contextos e conseqüências de nossas
interações com o mundo) selecionam e modelam nossos repertórios
comportamentais individuais. Já práticas culturais são produtos de
histórias individuais nas quais comportamentos reforçados por suas
conseqüências no plano individual contribuem para o sucesso de um grupo
de indivíduos na resolução ou diminuição de seus problemas. A cultura
gera mal-estar, pois, para participarmos dela, temos que aprender desde
muito cedo a às vezes não apenas abrir mão daquilo que nos faz nos
sentir bem, mas, também, a escolhermos muitas vezes justamente aquilo
que nos faz nos sentir mal. As interdições da cultura são modos
selecionados ao longo de gerações e gerações de indivíduos de nossa
espécie para lidarem “civilizadamente” uns com os outros em grupos de
animais humanos.
Já ouvi alguns psicanalistas (talvez
não tenham lido Freud suficientemente) dizerem que autistas severos não
teriam inconsciente, sendo este o motivo de a análise do comportamento
ser mais eficaz em seu tratamento (tal declaração absurda possivelmente
encontra suas bases na interpretação lacaniana do “inconsciente como
linguagem”). Nada mais equivocado! Mais correto seria dizermos que
autistas severos que não têm repertório descritivo se comportam somente
de modo inconsciente, uma vez que não descrevem contingências que os
levam a se comportar como se comportam. Cabe a nós, nesses casos,
descrevermos o que lhes aconteceu, o que lhes acontece e como o ambiente
atual controla seu responder. Essas descrições darão base a
planejamentos do que deve acontecer para que sejam selecionados repertórios
comportamentais mais apropriados, que lhes propiciem maiores realizações
e qualidade de vida. Fazendo isso, estamos nos atendo estritamente ao
que podemos chamar de sua subjetividade. Afinal, o que vem a ser
subjetividade, senão a singularidade das relações que cada um de nós
mantém com o mundo?
Freud, aos 60 anos, deu uma entrevista, na qual disse:
"A psicanálise jamais fecha a porta a uma nova verdade. [...] A vida
muda. A psicanálise também muda. Estamos apenas no começo de uma nova
ciência."
É uma pena que muitos psicanalistas não pareçam ter escutado ou compreendido a sabedoria expressa em tais palavras.
alguém citou pra mim uma vez Freud nesses termos: "Um dia novos psicofarmacos tornarão a psicoterapia psicanalitica dispensavel".
ResponderExcluirEle teria dito isso no final da carreira, qdo já pensava a Psicanalise mais como uma antropologia filosofica do que como uma psicologia.
confere?
Não conheço o trecho ao qual você se refere, Alessandro, mas creio que a leitura do trecho abaixo é suficiente para imaginarmos o interesse que Freud teria hoje por estudos que correlacionam o que sentem pessoas apaixonadas e o que ocorre com seus neurotransmissores:
ResponderExcluir"As neuroses `atuais', nos detalhes de seus sintomas e também em sua característica de exercer influência em todo sistema orgânico e toda função, mostram uma inconfundível semelhança com os estados patológicos que surgem da influência crônica de substâncias tóxicas externas e de uma suspensão brusca das mesmas - as intoxicações e as situações de abstinência. Os dois grupos de distúrbios se aproximam mais intimamente por meio de condições intermediárias, tal como a doença de Grave, que sabemos ser, também ela, devida à ação de substâncias tóxicas, porém de toxinas não introduzidas no corpo, mas originadas no próprio metabolismo da pessoa. Em vista dessa analogias, penso que não podemos evitar considerarmos as neuroses resultado de distúrbios no metabolismo sexual, seja porque se produzem mais toxinas do que o indivíduo pode metabolizar, seja porque as condições internas, e até mesmo as condições psíquicas, limitam o emprego adequado dessas substâncias. [...] a expressão `metabolismo sexual' ou `química da sexualidade' é um termo sem conteúdo; não sabemos nada a esse respeito, nem podemos dedicar se devemos supor a existência de duas substâncias sexuais, se seriam então denominadas `masculina' e `feminina', ou se poderíamos nos contentar com uma toxina sexual que deveríamos reconhecer como veículo de todos os efeitos estimulantes da libido. A estrutura teórica da psicanálise, que criamos, é, com efeito, uma superestrutura, que um dia terá de se erguer sobre seus fundamentos essenciais. Acerca disso, porém, nada sabemos ainda." (FREUD, 1917)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEu acho que não chegaria a tanto, Alessandro. Mesmo a terapia psicanalítica deve modificar o organismo de uma forma que os neurofármacos não conseguem. E, como o Vinícius parece ter aludido, há coisas em comum produzidas pela psicanálise e pela análise do comportamento. Segundo alguns anunciam, os fármacos e a neurociência em geral poderiam colocar em risco QUALQUER prática psicoterápica. Mas eu estou longe de concordar com isso!...
ResponderExcluirConcordo com o Daniel. Toda terapia é também, em determinado grau, um processo educativo. Grande parte dos transtornos não tem diretamente nada a ver com o funcionamento em si dos processos neurológicos.
ResponderExcluirQuerer "curar" os transtornos psicológicos/comportamentais unicamente com medicação seria algo semelhante a ensinar novos comportamentos através de neurofármacos. Como já se dizia antigamente: Educação não se compra em farmácia.
concordo c.vc anõnimo realmente educação se dá em casa e deve vir do''berço'' e não da rua como está nos dias atuais.
ExcluirA definição de subjetividade no final do texto está muito pobre, e a especulação de alguns psicanalistas em relação ao sujeito altista não é desprovida de sentido, e nem tão equivocada. Mas não vim aqui pra discutir esses termos, achei o texto maravilhoso.
ResponderExcluirA qual especulação de psicanalistas sobre o sujeito autista você se refere? Dentro da ampla classe diagnóstica transtornos autísticos são tantos e tantos sujeitos diferentes que seria impossível uma especulação que fizesse sentido para todos eles. Sugiro que assista ao documentário Le Mur. Se encontrar algum sentido ali, tente me explicar, porque não vi nenhum. Já com relação à definição de subjetividade ao final do texto, concordo com sua crítica. O tema é tão amplo que mereceria uma postagem inteira só dedicada a ele.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSou ateia por convicção e, se posso definir, intuitiva. Nunca li sobre o ateísmo, a não ser, recentemente, "Deus um Delírio" de Richard Dawkins, com o qual me identifiquei muito. Fui educada num catolicismo frouxo, sem missas obrigatórias. Minha descrença teve início aos doze anos e evoluiu com o passar dos anos. Não foi resultado de uma "grande desilusão" ou algo parecido. Há alguns anos eu escondia esta condição temendo o repúdio dos "crentes" em deus. Hoje, aos 74 anos, declaro-me abertamente ateia e não sinto distanciamento de amigos. Não creio em deus nem no diabo, como não creio em zeus ou alá e muito menos em pecado. Sinto-me responsável por meus atos e atribuo os fracassos, gestos ofensivos ou vitórias unicamente à minha própria iniciativa ou ao auxílio recebido por alguém.
ResponderExcluirIvonita, é um prazer te-la por aqui.
ExcluirApesar de ser ateu há 16 anos e ser muito tranquilo com relação a isso, ouço com grande frequência a conversa de "quando você ficar mais velho, vai ver que Deus existe" e variações.
Seu vídeo foi ideal para mostrar para minha mãe e fez a diminuir a frequência com que ouço isso. Refiro-me a esse vídeo:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=dapYG08w6R4
Ele é ótimo, você fala com clareza, eloquência, lucidez e aborda os principais pontos que os teístas iriam questionar (amor, valores, etc.).
Agradeço imensamente a você por isso.
Abraços