domingo, 10 de junho de 2012

Apenas no começo de uma nova ciência...

Autor: Vinícius Garcia

O texto abaixo foi redigido como esclarecimento aos pais de uma criança autista, cuja mãe era psicóloga e afeita à psicanálise. Baseado em citações de Freud presentes na excelente monografia de autoria de Pedro Sampaio - Psicanálise e Behaviorismo Radical: um paralelo epistemológico -, trata-se de um texto que sintetiza didaticamente informações históricas importantes que possivelmente se relacionam com o atual embate epistemológico entre psicanalistas e analistas do comportamento no campo do tratamento do autismo.


B. F. Skinner, cientista e autor que aprumou o behaviorismo para a investigação também de fenômenos como sentimentos e pensamentos, acessíveis por meio da introspecção e de relatos verbais, cita Freud diversas vezes ao longo de toda a sua obra. As citações de Skinner a Freud geralmente são acompanhadas por redescrições em termos analítico-comportamentais de descrições psicanalíticas de fenômenos. Um bom leitor que estude a obra dos dois autores constatará que não há incompatibilidade ou impossibilidade absoluta de traduções interconceituais entre a epistemologia da psicanálise de Freud e a epistemologia do behaviorismo de Skinner.

O behaviorismo conhecido por Freud no início do séc. XX era sustentado por cientistas que muitas vezes negavam a possibilidade de qualquer estudo científico de fenômenos por eles considerados como não-observáveis. Era uma postura cientificamente ingênua, e que leva, ainda hoje, pessoas erroneamente a classificarem o behaviorismo pós-skinneriano como atrelado ao positivismo de Auguste Comte, que defendia, entre outras exigências, que necessariamente deveria haver concordância entre dois ou mais observadores sobre um mesmo fenômeno para que se pudesse validar qualquer hipótese a seu respeito.

Freud descreveu o que chamou de inconsciente representando-o por meio de um “aparelho psíquico” composto por componentes que ele chamou de ego, Id, superego e pulsões. Chamou tais conceitos de “metáforas didáticas”, que possivelmente seriam abandonadas à medida que novas contribuições científicas surgissem. Tais conceitos foram utilizados, segundo o próprio Freud, para teorizar a respeito de algo que ele intuía ser o início de uma nova “ciência natural”. Ele afirmou por várias vezes, sendo a última delas em 1937, dois anos antes de vir a falecer, que pretendia que a psicanálise fosse uma “ciência natural”, ou seja, uma ciência que descrevesse fenômenos que ocorrem na natureza, e não alguma filosofia metafísica ou coisa do gênero. Chegou a romper com um amigo de longa data e “discípulo”, C. G. Jung, que propusera aproximações metafísicas entre a psicanálise e o que pareciam ser teorias esotéricas. Não há dúvidas de que Freud se propunha a iniciar a elaboração de um repertório descritivo científico sobre fenômenos naturais que ele julgava importante que fossem descritos, ainda que com o auxílio de conceitos que ele chamou de “andaimes intelectuais”, a serem, talvez, posteriormente descartados. Com base em Darwin, Freud propunha que as características biológicas humanas não haviam sido modificadas no mesmo ritmo em que as culturas humanas haviam surgido e se desenvolvido, e que o animal humano sofreria ao nascer e ter de se adaptar à cultura vigente.

As investigações de Skinner sobre o comportamento de animais humanos e não humanos surgem em um momento em que já se percebia claramente, mesmo entre aqueles que se declaravam behavioristas, que havia excessos naquilo que se julgava ser um necessário rigor com relação à produção científica sobre o comportamento humano. Via-se que tais excessos engessavam o avanço da compreensão científica de fenômenos comportamentais importantes até então ainda pouco explorados. O estudo científico das chamadas ações reflexas havia sido muito alardeado, mas não fornecia bases sólidas para teorizações sobre comportamentos então chamados de voluntários. Estes permaneciam como uma lacuna a ser preenchida. O russo I. P. Pavlov havia sido laureado com o prêmio Nobel, em 1904, pela descoberta do que chamara de “estímulo condicionado”. Tal descoberta fez com que muitos voltassem atenções exclusivas para um fenômeno conhecido como pareamento de estímulos.

Aqui é necessário situar brevemente a importante descoberta de Pavlov. O fisiologista russo fazia experimentos sobre o sistema digestivo de cães quando notou algo que lhe pareceu digno de nota. Ele havia colocado uma cânula nas glândulas salivares do cão experimental para medir de modo preciso a excreção de saliva ao longo das situações experimentais. No entanto, percebeu um acaso importante: o cão salivava sempre que o cientista entrava no laboratório. Pavlov aventou a hipótese de que os sons de seus passos eliciavam o reflexo de salivação do cão, uma vez que seus passos haviam sido anteriormente pareados com apresentações de comida. Testou então essa hipótese. Soou um metrônomo e observou que não havia qualquer resposta de salivação do cão. Pareou então o som do metrônomo com a apresentação de comida e repetiu o procedimento por algumas vezes. Notou, então, que o cão passara a salivar logo que ouvia o som do metrônomo.

Bom... O que isso teria a ver com Freud e Skinner? Muita coisa, segundo veremos. Tanto Freud como Skinner reconhecem a procedência da não ruptura entre a espécie humana e outras espécies não humanas. Os dois tomam como base as observações de Darwin quanto à seleção natural. Muito do que se aplica à compreensão do comportamento de animais não-humanos aplica-se também à compreensão de comportamentos de animais humanos. Freud chega a aventar a hipótese de que é possível que seu “quadro esquemático geral de aparelho psíquico” se aplique também a animais não humanos “que se assemelhem mentalmente ao homem” e tenham “um longo período de dependência na infância”, segundo suas próprias palavras, aqui colocadas entre aspas.

Skinner dirá que o que nos acontece nos modifica, modificando, assim, também os modos como respondemos ao mundo, ou como o mundo controla nosso responder. Se eu passar por você na rua amanhã, poderei olhar para você, mas provavelmente passarei direto sem lhe cumprimentar. No entanto, se eu trocar poucas palavras frente a frente com você hoje, é bem provável que eu lhe diga um “oi” ao avistar seu rosto amanhã. O estímulo visual “seu rosto” controlará meu responder de um modo diferente de como controlava antes. Os contextos e conseqüências de nossas ações nos modificam, aumentando ou diminuindo a probabilidade de voltarmos a agir dos modos como agimos. Somos capazes de descrever muito pouco do que nos acontece e nos modifica. O que pensamos, sentimos, falamos e fazemos é produto de modificações ocorridas em nossos organismos em contextos diversos de nossas histórias de vida, ainda que muitas vezes não sejamos capazes de descrever como se deram tais modificações ou como foram modificados os modos como respondemos ao mundo. A teoria freudiana do inconsciente condiz com essa descrição de Skinner sobre o comportamento dos organismos. O que se faz na psicanálise freudiana não é mais do que levar a pessoa a descrever o que lhe aconteceu e acontece, de modo a fornecer bases para que ela planeje de modo mais efetivo o que lhe acontecerá. Em certa medida, o inconsciente proposto por Freud encontra em Skinner uma descrição coerente e não internalizada, como era o caso do “aparelho psíquico” freudiano, mas relacional.

Os conceitos freudianos de Id, ego e superego encontram analogias nos conceitos de filogênese, ontogênese e cultura utilizados por Skinner. Somos uma espécie animal, e, como as demais espécies animais, tivemos características anatômicas e fisiológicas selecionadas em contingências de sobrevivência ocorridas com nossos ancestrais biológicos, produzindo sensibilidades específicas a estimulações específicas. Na ontogênese (história individual), contingências de reforçamento (contextos e conseqüências de nossas interações com o mundo) selecionam e modelam nossos repertórios comportamentais individuais. Já práticas culturais são produtos de histórias individuais nas quais comportamentos reforçados por suas conseqüências no plano individual contribuem para o sucesso de um grupo de indivíduos na resolução ou diminuição de seus problemas. A cultura gera mal-estar, pois, para participarmos dela, temos que aprender desde muito cedo a às vezes não apenas abrir mão daquilo que nos faz nos sentir bem, mas, também, a escolhermos muitas vezes justamente aquilo que nos faz nos sentir mal. As interdições da cultura são modos selecionados ao longo de gerações e gerações de indivíduos de nossa espécie para lidarem “civilizadamente” uns com os outros em grupos de animais humanos.

Já ouvi alguns psicanalistas (talvez não tenham lido Freud suficientemente) dizerem que autistas severos não teriam inconsciente, sendo este o motivo de a análise do comportamento ser mais eficaz em seu tratamento (tal declaração absurda possivelmente encontra suas bases na interpretação lacaniana do “inconsciente como linguagem”). Nada mais equivocado! Mais correto seria dizermos que autistas severos que não têm repertório descritivo se comportam somente de modo inconsciente, uma vez que não descrevem contingências que os levam a se comportar como se comportam. Cabe a nós, nesses casos, descrevermos o que lhes aconteceu, o que lhes acontece e como o ambiente atual controla seu responder. Essas descrições darão base a planejamentos do que deve acontecer para que sejam selecionados repertórios comportamentais mais apropriados, que lhes propiciem maiores realizações e qualidade de vida. Fazendo isso, estamos nos atendo estritamente ao que podemos chamar de sua subjetividade. Afinal, o que vem a ser subjetividade, senão a singularidade das relações que cada um de nós mantém com o mundo?

Freud, aos 60 anos, deu uma entrevista, na qual disse:

"A psicanálise jamais fecha a porta a uma nova verdade. [...] A vida muda. A psicanálise também muda. Estamos apenas no começo de uma nova ciência."

É uma pena que muitos psicanalistas não pareçam ter escutado ou compreendido a sabedoria expressa em tais palavras.

11 comentários:

  1. alguém citou pra mim uma vez Freud nesses termos: "Um dia novos psicofarmacos tornarão a psicoterapia psicanalitica dispensavel".

    Ele teria dito isso no final da carreira, qdo já pensava a Psicanalise mais como uma antropologia filosofica do que como uma psicologia.

    confere?

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  2. Não conheço o trecho ao qual você se refere, Alessandro, mas creio que a leitura do trecho abaixo é suficiente para imaginarmos o interesse que Freud teria hoje por estudos que correlacionam o que sentem pessoas apaixonadas e o que ocorre com seus neurotransmissores:

    "As neuroses `atuais', nos detalhes de seus sintomas e também em sua característica de exercer influência em todo sistema orgânico e toda função, mostram uma inconfundível semelhança com os estados patológicos que surgem da influência crônica de substâncias tóxicas externas e de uma suspensão brusca das mesmas - as intoxicações e as situações de abstinência. Os dois grupos de distúrbios se aproximam mais intimamente por meio de condições intermediárias, tal como a doença de Grave, que sabemos ser, também ela, devida à ação de substâncias tóxicas, porém de toxinas não introduzidas no corpo, mas originadas no próprio metabolismo da pessoa. Em vista dessa analogias, penso que não podemos evitar considerarmos as neuroses resultado de distúrbios no metabolismo sexual, seja porque se produzem mais toxinas do que o indivíduo pode metabolizar, seja porque as condições internas, e até mesmo as condições psíquicas, limitam o emprego adequado dessas substâncias. [...] a expressão `metabolismo sexual' ou `química da sexualidade' é um termo sem conteúdo; não sabemos nada a esse respeito, nem podemos dedicar se devemos supor a existência de duas substâncias sexuais, se seriam então denominadas `masculina' e `feminina', ou se poderíamos nos contentar com uma toxina sexual que deveríamos reconhecer como veículo de todos os efeitos estimulantes da libido. A estrutura teórica da psicanálise, que criamos, é, com efeito, uma superestrutura, que um dia terá de se erguer sobre seus fundamentos essenciais. Acerca disso, porém, nada sabemos ainda." (FREUD, 1917)

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  3. Eu acho que não chegaria a tanto, Alessandro. Mesmo a terapia psicanalítica deve modificar o organismo de uma forma que os neurofármacos não conseguem. E, como o Vinícius parece ter aludido, há coisas em comum produzidas pela psicanálise e pela análise do comportamento. Segundo alguns anunciam, os fármacos e a neurociência em geral poderiam colocar em risco QUALQUER prática psicoterápica. Mas eu estou longe de concordar com isso!...

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  4. Concordo com o Daniel. Toda terapia é também, em determinado grau, um processo educativo. Grande parte dos transtornos não tem diretamente nada a ver com o funcionamento em si dos processos neurológicos.
    Querer "curar" os transtornos psicológicos/comportamentais unicamente com medicação seria algo semelhante a ensinar novos comportamentos através de neurofármacos. Como já se dizia antigamente: Educação não se compra em farmácia.

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    1. concordo c.vc anõnimo realmente educação se dá em casa e deve vir do''berço'' e não da rua como está nos dias atuais.

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  5. A definição de subjetividade no final do texto está muito pobre, e a especulação de alguns psicanalistas em relação ao sujeito altista não é desprovida de sentido, e nem tão equivocada. Mas não vim aqui pra discutir esses termos, achei o texto maravilhoso.

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    1. A qual especulação de psicanalistas sobre o sujeito autista você se refere? Dentro da ampla classe diagnóstica transtornos autísticos são tantos e tantos sujeitos diferentes que seria impossível uma especulação que fizesse sentido para todos eles. Sugiro que assista ao documentário Le Mur. Se encontrar algum sentido ali, tente me explicar, porque não vi nenhum. Já com relação à definição de subjetividade ao final do texto, concordo com sua crítica. O tema é tão amplo que mereceria uma postagem inteira só dedicada a ele.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Sou ateia por convicção e, se posso definir, intuitiva. Nunca li sobre o ateísmo, a não ser, recentemente, "Deus um Delírio" de Richard Dawkins, com o qual me identifiquei muito. Fui educada num catolicismo frouxo, sem missas obrigatórias. Minha descrença teve início aos doze anos e evoluiu com o passar dos anos. Não foi resultado de uma "grande desilusão" ou algo parecido. Há alguns anos eu escondia esta condição temendo o repúdio dos "crentes" em deus. Hoje, aos 74 anos, declaro-me abertamente ateia e não sinto distanciamento de amigos. Não creio em deus nem no diabo, como não creio em zeus ou alá e muito menos em pecado. Sinto-me responsável por meus atos e atribuo os fracassos, gestos ofensivos ou vitórias unicamente à minha própria iniciativa ou ao auxílio recebido por alguém.

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    1. Ivonita, é um prazer te-la por aqui.

      Apesar de ser ateu há 16 anos e ser muito tranquilo com relação a isso, ouço com grande frequência a conversa de "quando você ficar mais velho, vai ver que Deus existe" e variações.

      Seu vídeo foi ideal para mostrar para minha mãe e fez a diminuir a frequência com que ouço isso. Refiro-me a esse vídeo:

      http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=dapYG08w6R4

      Ele é ótimo, você fala com clareza, eloquência, lucidez e aborda os principais pontos que os teístas iriam questionar (amor, valores, etc.).

      Agradeço imensamente a você por isso.

      Abraços

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