sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Termos psicológicos disposicionais em análise do comportamento

Autor: Daniel Gontijo

Há um tempo atrás, trombei com o interessante artigo "Termos psicológicos disposicionais e análise do comportamento". Nele, Filipe Lazzeri e Jorge M. Oliveira-Castro (2010) discutem a crítica de Skinner sobre o uso de termos mentalistas e vernaculares em uma ciência do comportamento. Para o fundador do behaviorismo radical, termos como "inteligência", "extroversão" e "responsabilidade" -- alguns exemplos de termos psicológicos disposicionais (TPDs) -- seriam inadmissíveis, porquanto "coisificariam" ou "substancializariam" fenômenos comportamentais. Se os admitíssemos, correríamos o risco de deixar que eles tomem para si o papel de explicar certos comportamentos, incorrendo portanto num dos problemas básicos do internalismo. Mas Lazzeri e Oliveira-Castro veem uma solução para esse impasse: em vez de tratá-los como entidades, construtos ou variáveis latentes que causam ou dão início ao comportamento, podemos concebê-los como termos que fazem menção a certas respostas que ocorrem regularmente em certos contextos.

Honestamente, eu ainda não estou certo sobre por que chamar "inteligência", "extroversão" e "responsabilidade" de fenômenos disposicionais. Costumo pensar que "disposicional" se refere a uma característica estrutural do organismo, ou mesmo a uma predisposição para responder de certa maneira em determinado contexto. Embora eu ache justificável o esforço para incorporarmos um pouco de estruturalismo à análise do comportamento, não é esse o foco e o sentido dados pelos autores do artigo aos TPDs. Como mencionado acima, eles asseveram que os TPDs fazem "referência a relações condicionais entre eventos e comportamentos", algo que não fora contemplado por Skinner. Se, por exemplo, dizemos "João é extrovertido", poderíamos estar dizendo que, quando na presença de pessoas ou em ambientes musicais (contextos), João é frequentemente comunicativo e brincalhão ou costuma dançar (respostas). Outro exemplo é o conceito que venho desenvolvendo de "ateísmo", qual seja, o de questionar ou criticar práticas e ideias religiosas de forma generalizada (isto é, fazê-lo, mesmo que privadamente, perante qualquer manifestação religiosa) e regular (isto é, fazê-lo frequentemente). Nesses e em outros casos,(1) pode-se entender que os TPDs figuram como rótulos ou representantes úteis de certos padrões comportamentais.

Para Lazzeri e Oliveira-Castro (2010), o uso dos termos psicológicos disposicionais é bem justificado:

Apesar da vagueza dos [TPDs] na linguagem cotidiana, a lógica de seus usos faz referência a relações condicionais entre eventos e comportamentos [...] Tais conceitos, mesmo que de forma limitada, possibilitam ao ouvinte fazer previsão sobre como as pessoas ou outros organismos comportar-se-ão frente a algumas circunstâncias. Essas circunstâncias são candidatas, por excelência, para constarem em uma análise funcional das variáveis que influenciam o comportamento.
Os autores ressaltam que a contribuição dos TPDs a uma análise comportamental é apenas indireta, uma vez que apenas nos permitem fazer "inferências sobre prováveis contingências de reforço e de punição – que é aquilo que realmente" explica os comportamentos. E, ainda, alertam que a adoção dos TPDs não substituiria o uso dos termos técnicos tradicionais da análise do comportamento. Em vez disso, podemos adotá-los por levarem economia conceitual ao contexto de pesquisas e até mesmo à prática clínica.

Eu vejo a proposta de incorporarmos os TPDs à análise do comportamento como algo atraente, senão relevante, mas permaneço em dúvida sobre se o termo "disposicional" representa bem o que estamos querendo nos referir. Talvez as expressões "termos relacionais" ou "termos contingenciais" captem melhor a ideia em questão. Contudo, e como diria Hume, a escolha de uma palavra ou expressão pouco importa quando se está claro a que queremos nos referir com ela. Agora, se os TPDs vão conseguir se adaptar ao discurso behaviorista radical, só as novas contingências dirão.


Nota

(1) Além do que se poderia chamar "traços de personalidade", os TPDs envolvem, por exemplo, diversos construtos tradicionalmente mentalistas (por exemplo, inteligência, atenção e flexibilidade) e posturas ideológicas, existenciais e, por que não, desportivas ("Pedro e Ramon são atleticanos" e "Daniel é cruzeirense").

Referência

Lazzeri, F., & Oliveira-castro, J. M. (2010). Termos psicológicos disposicionais e análise do  comportamento. Princípios, v.17, n.28, jul./dez., p. 155-183.

10 comentários:

  1. A proposta do Filipe Lazzeri vai ao encontro das abordagens molares do comportamento. Sendo mais específico, vai ao encontro da abordagem do Howard Rachlin. Creio que há um esforço no seu trabalho para diminuir o volume das críticas lançadas aos behavioristas quanto ao problema dos termos intencionais dentro de uma estrutura comportamental. Inclusive, não deixa de ser interessante a avaliação crítica que o Filipe faz da festejada teoria dos Sistemas Intencionais do Dennett.

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  2. A festejada teoria dos Sistemas Intencionais do Dennett tem mais valor político do que filosófico ou científico.

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    1. Anônimo 1,

      No artigo que citei no texto, os autores de fato fazem referência à questão dos termos intencionais, e seus problemas e soluções estão bem próximos dos relacionados aos TPDs.

      Anônimo 2,

      Poderia esclarecer essa ideia?

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  3. Daniel, acho muito louvável a proposta de uma interface entre a AC e a psicologia mentalista/internalista porque, querendo ou não, os interesses das diferentes áreas da psicologia são fundamentalmente os mesmos. Mas a proposta do uso de termos disposicionais é particularmente muito problemática.

    "[...] eles asseveram que os TPDs fazem "referência a relações condicionais entre eventos e comportamentos" [...]"

    Fazem, sim, se você é um analista do comportamento e compreende que qualquer referência a algo que uma pessoa faz é, em suma, uma "referência a relações condicionais entre eventos e comportamentos". Se você está se comunicando com um não-analista do comportamento - e mesmo com alguns analistas do comportamento -, não é possível assumir de antemão que um TPDs está comunicando tais relações. Na verdade, mais seguro do que ter esperança de estar comunicando tais relações ao usar um TPD é comunicar diretamente as tais relações.

    Em contextos de pesquisa em AC, TPDs representam um retrocesso e um desserviço, sem dúvida alguma. Não fica claro como usar um TPD levaria a economia conceitual pois um termo disposicional não é equivalente a uma descrição contingencial. Não vejo como pode ser de outra forma. Baum e Heath (1992) desenvolveram o argumento em um excelente artigo que infelizmente não foi devidamente analisado pelo artigo que você referenciou. O trecho a seguir é do resumo do trabalho: "The philosopher Dennett justifies intentional explanations on the grounds that they are provisional and can be cashed out in principle. Skinner objected to such explanations on the grounds that they are never cashed out in practice. Their different views arise from their divergent goals for psychology: understanding intelligence and rationality versus understanding behavior."

    Há ao menos duas coisas muito importantes, aí. TDPs estariam cumprindo um papel provisório na descrição de relações comportamentais, portanto não faz sentido insistir em seu uso quando está disponível uma forma mais econômica (e menos sujeita aos descaminhos do comportamento verbal) de tratar o fenômeno . A outra coisa importante está na última frase do trecho: talvez estejamos insistindo no uso de termos disposicionais por comodismo ou por incompreensão acerca daquilo que eles de fato são. Eles são modelos - imperfeitos - do fenômeno que nos interessa, não o próprio fenômeno. Ao falar de extroversão e não das relações comportamentais específicas às quais queremos nos referir, nós perpetuamos o que, em última instância, é uma visão distorcida, menos útil, do mundo. Assim como não é nossa intenção estudar a extroversão, mas o comportamento a que chamamos tradicionalmente de extrovertido, não deveria ser nosso objetivo compreender a extroversão de Fulano quando ele está na balada, mas o comportamento dele nesse contexto, independente do rótulo - o qual, novamente, atrapalha, pois é um preconceito. O comportamento, quando analisado, se mostra muito menos compartimentalizável do que sugerem as práticas verbais que historicamente nos foi possível construir. Não se trata de "behavioralizar" a linguagem das pessoas, mas optar pelos TPDs quando é possível utilizar uma linguagem livre de mentalismos/internalismos é abrir mão da clareza que a ciência trouxe à compreensão do comportamento.

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    1. Júnio, vou argumentar com base no seguinte trecho:

      "Não fica claro como usar um TPD levaria a economia conceitual pois um termo disposicional não é equivalente a uma descrição contingencial."

      Pense no caso de alguém que queira estudar o ceticismo. Digamos que queiramos definir ceticismo assim: "questionar (resposta) certas afirmações que não são fundadas em boas justificações, empíricas ou racionais (contexto)". Imagine que vamos falar desse operante ao longo de todo um artigo, ou mesmo ao longo de todo um livro. Não seria mais econômico encontrarmos um rótulo para esse operante? Desde que esteja claro o que queremos dizer com o termo disposicional "ceticismo", é mais econômico utilizá-lo do que ter que descrever inúmeras vezes aquele operante. Isto é economia conceitual.

      Penso que, se não adotarmos essa prática, teremos um monte de artigos falando sobre não se sabe o quê. Pense na facilidade de se encontrar estudos através de palavras-chave; pense na economia conceitual em textos, artigos e livros; pense na facilidade de comunicação entre profissionais de áreas afins e com leigos; e lembre-se que não se está atribuindo poder causal às "disposições" e que elas não tomariam o lugar dos termos técnicos da AC/BR.

      O que acha? Valeu pela participação!

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  4. Antes de ler o post do Junio não estava muito claro para mim o que estava sendo criticado e o que estava sendo defendido no texto. Agora entendi melhor, e concordo em gênero, número e grau com tudo que o Junio falou. Mas vou fazer um pouco o papel do advogado do diabo aqui.

    Apesar de concordar que é mais proveitoso falar em relações comportamentais do que falar em TPDs que supostamente fazem referência a tais relações, pouco foi feito no sentido de "desempacotar" os TDPs na Análise do Comportamento até hoje. Somos rápidos em falar que inteligência, personalidade, introversão, agressividade, ou sei lá mais ou que se referem a relações comportamentais organismo-ambiente, mas a descrição exata do que seriam tais relações ainda não é muito clara.

    Vamos pensar em um teste de personalidade, por exemplo. Um teste mede "traços" de personalidade, que se referem a disposições do indivíduo de agir de certa forma em TODAS AS SITUAÇÕES. Traços de personalidade não são contextuais, são universais (para o indivíduo). É claro que existem explicações comportamentais para o fato de indivíduos se comportarem de formas semelhantes em contextos diferentes (uma espécie de insensibilidade a variações nas contingências), mas não sei se as explicações atuais são suficientes para explicar, por exemplo, um transtorno de personalidade, que se refere a uma forma bastante padronizada e inflexível de se comportar, e surpreendentemente semelhante entre indivíduos diferentes.

    O conceito de inteligência dá margem a problemas semelhantes. É sabido que uma pessoa com um escore alto em um teste de inteligência tem uma grande chance de também ter notas altas em matérias escolares, mesmo que aparentemente sejam repertórios totalmente diferentes - resolver fórmulas de fisico-química e preencher lacunas no Raven, por exemplo. Essa correlação faz a gente imaginar que existe alguma espécie de "denominador comum", e são essas coisas que a psicologia mentalista vem procurando. Como qualquer analista do comportamento, concordo que buscar relações comportamentais é muito mais proveitoso (e econômico, como vocês disseram). Mas no status atual de nossa ciência, não sei se essas relações estão muito claras... talvez por um desdém excessivo que os próprios ACs têm pelos chamados termos disposicionais.

    Deixo claro que os problemas que estou tentando apontar não são tanto da Análise do Comportamento, mas daquilo que vem sendo feito dela até hoje. Ainda que questionáveis, conceitos como inteligência ou personalidade são úteis (de alguma forma), e não há substitutos equivalentes numa descrição puramente comportamental ainda.

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    1. Interessantes considerações, Nicolau!

      "[...] pouco foi feito no sentido de 'desempacotar' os TDPs na Análise do Comportamento até hoje. Somos rápidos em falar que inteligência, personalidade, introversão, agressividade, ou sei lá mais ou que se referem a relações comportamentais organismo-ambiente, mas a descrição exata do que seriam tais relações ainda não é muito clara."

      Justamente! E acho que nos exercitarmos para desempacotar esses termos e descrevê-los comportamentalmente nos renderia bons trabalhos críticos e profícuos. Estou pensando em fazer algo a respeito da "memória de trabalho" em breve...

      "Um teste mede 'traços' de personalidade, que se referem a disposições do indivíduo de agir de certa forma em TODAS AS SITUAÇÕES."

      Esse, por exemplo, é um dos problemas dos testes de personalidade. A "validade ecológica" dos testes de personalidade é relativamente baixa (ouvi isso numa conferência do EMAP do ano passado), isto é, os resultados obtidos por suas medidas não convergem satisfatoriamente com a observação do comportamento dos respondentes em contextos naturais. Por quê? Imagino que em parte pelas limitações dos testes, cujas questões não contemplam a variedade de contextos necessária para se extrair uma boa ideia do perfil comportamental dos respondentes. Em outros termos, seus resultados não são adequadamente generalizáveis, já que o ambiente de testagem não replica satisfatoriamente ambientes naturais.

      Mas não podemos descartar a utilidade dos TPDs em função das limitações dos testes. Se é difícil, mas não impossível, a tarefa de replicar/reproduzir ambientes naturais através desses instrumentos, talvez não seja tão hercúlea a tarefa de identificarmos e nomearmos (TPDs) certos padrões comportamentais -- o que, como venho argumentando, pode ser muito proveitoso.

      "Mas no status atual de nossa ciência, não sei se essas relações estão muito claras... talvez por um desdém excessivo que os próprios ACs têm pelos chamados termos disposicionais."

      Essas relações de fato são um bom problema de pesquisa, e parece que os cognitivistas eventualmente as estudam ancorados em pressupostos que mais complicam do que facilitam as coisas. Eu gostaria de ver o pessoal da AC se envolvendo com isso!

      Abraço!

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  5. "Termos disposicionais" é uma expressão utilizada por Ryle para definir esses conceitos. É mais fácil chamá-los assim por uma questão de congruência teórica. O conceito de "conceito disposicional", em Ryle, significa isso: probabilidade de agir de tal forma, dadas tais condições. Os argumentos do Lazzeri e o Oliveira-castro são essenciais para o diálogo da análise do comportamento com outras psicologias. Quando você ler em um manual de psicologia organizacional "Competência", você pode traduzir isso como comportar-se de tal forma em tal contexto. Fica mais fácil estabelecer a comunicação aceitando esses termos como diposicionais e fazendo a tradução operacional depois.

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  6. E eu discordo de Hume: a escolha da palavra tem que ser bem feita, pois o significado está no uso.
    Uma revisão conceitual deve abarcar o uso atual, e reafirmar um novo uso. Não adianta eu quero chamar "porta" de "cadeira" a partir de hoje, sendo que cada palavra é utilizada de forma diferente na comunidade verbal atual.
    É improdutivo chamar de emoção o funcionamento de um certo sub-sistema do cérebro, por exemplo (e quanto a isso, recomendo ler Bennet & Hacker).

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    1. Eu também costumo ser rigoroso quanto ao uso de termos psicológicos, sobretudo porque termos mal escolhidos podem gerar confusão -- e metáforas também! Mas, no contexto do texto, tive mais intenção de dar ênfase à ideia de que a PROPOSTA dos termos disposicionais é importante para a análise do comportamento. Eu gostaria mais que falássemos de "termos contingenciais", "comportamentais" ou "relacionais".

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