terça-feira, 2 de outubro de 2012

Relações entre cleptomania e ansiedade: alguns apontamentos sobre o papel do reforçamento negativo*

Autor: Vinícius Garcia

Ao tratar um caso que envolvia comportamentos que caracterizavam a chamada cleptomania, realizei uma análise funcional do comportamento de furto compulsivo. Os resultados sugeriram fortemente que o comportamento de furtar ocorria apenas quando o cliente estava se sentindo ansioso por longos períodos. A ansiedade crônica por períodos prolongados precedia sempre os episódios de furto. Como é comum em casos de cleptomania, o cliente, na maioria das vezes, furtava objetos sem qualquer valor, ou mesmo notas de um ou dois reais. Desde o início, estava bastante claro que os objetos ou valores furtados não mantinham nenhuma relação com as necessidades materiais do cliente.


Ao longo da terapia, o cliente conseguiu descrever que, ao se sentir muito ansioso sob estimulações ansiogênicas sobre as quais não tinha controle, ele se engajava em comportamentos que produziam contextos também ansiogênicos, mas sobre os quais podia exercer um relativo controle. Ou seja, ao se sentir constante e cronicamente ansioso sob diversos contextos que envolviam incontrolabilidade, ele se envolvia em contextos que produziam quadros súbitos e agudos de ansiedade, contextos estes que eram controláveis. Em tais contextos controláveis, ele poderia ser surpreendido furtando ou poderia se safar e sentir um alívio imediato da ansiedade. Tal dinâmica não resultava em alívios duradouros da ansiedade, apenas em amenizações imediatas. O comportamento cleptomaníaco, portanto, era mantido por reforçamento negativo, ao amenizar momentaneamente, por meio da cessação de estimulações ansiogênicas controláveis, quadros crônicos de ansiedade produzidos por estimulações ansiogênicas incontroláveis.

Não entrarei em maiores detalhes sobre o caso, mas a observação clínica acima sugere que respondentes de ansiedade e o reforçamento negativo podem constituir fatores importantes em alguns casos que envolvem comportamento cleptomaníaco. Ao pesquisar na internet sobre alguma observação clínica similar, surpreendentemente encontrei muito pouco material produzido por analistas do comportamento e uma referência bastante similar à observação aqui descrita, mas de um gestalt-terapeuta (1). As referências analítico-comportamentais ao reforçamento negativo em casos de cleptomania resumem-se a poucos trechos em alguns manuais de psiquiatria (2), claramente não redigidos por analistas do comportamento (o que se nota devido ao pouco rigor conceitual empregado). Tais manuais de psiquiatria fazem referência a uma hipótese denominada teoria da auto-medicação [self-medication theory], que envolve o reforçamento negativo.

Alguns tratamentos de base analítico-comportamental envolveram o uso de estimulação aversiva e foram citados por Hodgins e Peden, em um artigo que descreve também tratamentos cognitivo-comportamentais (3). Em tais tratamentos analítico-comportamentais, foi utilizada uma técnica denominada sensibilização encoberta [covert sensitization], que constituía em imaginar situações aversivas relacionadas ao comportamento cleptomaníaco. Em um dos casos (4), o cliente relatou uma redução nos comportamentos de furto, mas nenhuma alteração nos seus “impulsos de furtar”. Outra cliente (5) relatou que seus “impulsos haviam diminuído um pouco”, havendo, no entanto, o registro de uma recaída em um acompanhamento de 14 meses. Em um terceiro caso (6), a cliente, durante um período de acompanhamento de 10 semanas, relatou três recaídas. Tais exemplos, contrapostos à observação clínica referida mais acima, no início desta postagem, sugerem possíveis problemas decorrentes da utilização de técnicas sem a prévia realização de uma análise funcional detalhada do comportamento cleptomaníaco no caso a caso.


Se o comportamento cleptomaníaco for mantido por reforçamento negativo, ao cessar ou amenizar momentaneamente estimulações ansiogênicas, técnicas aversivas como as que foram utilizadas nos estudos citados por Hodgins e Peden podem agravar o problema, uma vez que podem produzir o aumento da ansiedade. Um tratamento mais indicado nesses casos deveria envolver a aprendizagem de comportamentos alternativos que viessem a produzir a amenização ou a cessação da ansiedade, talvez associado à utilização de medicações ansiolíticas em casos mais graves. Outra linha promissora de atuação pode envolver a sensibilização do cliente às conseqüências imediatas e atrasadas de seus comportamentos.

* A discussão do caso clínico com o amigo e analista do comportamento Junio Rezende contribuiu de modo significativo para o refinamento da descrição funcional aqui apresentada.


Referências



3) HODGINS, David, C. e PEDEN, Nicole. Tratamento cognitivo-comportamental para transtornos do controle de impulsos. Rev. Bras. Psiquiatr. [online]. 2008, vol.30, suppl.1, pp. S31-S40.  Epub Aug 03, 2007. ISSN 1516-4446.  

4) Guidry L, S. Use of covert punishing contingency in compulsive stealing. J Behav Ther Exp Psychiatry. 1975;6(2):169.

5) Gauthier, J. & Pellerin, D. Management of compulsive shoplifting through covert sensitization. J Behav Ther Exp Psychiatry. 1982;13(1):73-5.

6)  Keutzer, C. S. Kleptomania: a direct approach to treatment. J Med Psychol. 1972;45(2):159-63. 

12 comentários:

  1. Muito curiosa a sua análise, Vinícius. Adquirir comportamentos alternativos ao furto compulsivo pode ser uma boa estratégia, mas cujo efeito seria apenas paliativo. Para arrancar o mal pela raiz, o indivíduo teria que aprender a obter controle sobre as situações ansiogênicas virtualmente incontroláveis -- ocasião em que os furtos ocorriam. O que acha?

    Abraço!

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  2. No caso, muitas das situações ansiogênicas não eram passíveis de controle. Não adianta termos ilusões de que seremos capazes de controlar tudo aquilo que nos deixa ansiosos. Na verdade, nós temos poucas possibilidades de controle sobre um monte de coisas que acontecem nas nossas vidas, mas esse pouco pode fazer grande diferença. Adquirir controle sobre aquilo que está ao nosso alcance pode ser tão importante quanto aceitar a incontrolabilidade daquilo que escapa às nossas possibilidades de controle. Algo curioso nesse caso é que algumas das situações que deixavam o cliente ansioso só se resolveram depois que ele parou de se preocupar tanto com elas.

    Abraço!

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  3. Adorei essa análise. Tem muito a ver, e comecei a pensar sobre uns casos que atendo sob essa perspectiva de criar uma situação ansiogênica controlável para poder obter algum tipo de alívio, realmente faz sentido.

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  4. Fico feliz que o exemplo tenha despertado seu interesse, Nicolau. Atender esse cliente tem sido algo que tem mudado bastante algumas das minhas maneiras de pensar e interpretar outros casos que atendo (e até algumas coisas que acontecem comigo).

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  5. Upon further reflection...

    Uma coisa que me incomoda nessa análise, o que de forma algum tira seus méritos, é um caráter ligeiramente mentalista. Essa análise coloca as variáveis internas como determinantes em um nível não correspondente com as contingências externas... num sentido assim, por exemplo:

    João bateu o carro na rua e ficou com raiva. Ele saiu do carro e deu um soco na cara do motorista do outro carro.
    Uma explicação típica para o comportamento de João poderia estar na batida do carro, ou nas consequências de dar um soco na cara do motorista. Se você entende que essas consequências são apenas a amenização da raiva, o soco seria funcionalmente equivalente a respirar fundo, por exemplo. A explicação para o soco seria interna - a raiva - sem que os eventos que geraram a raiva tenham muita importância. João poderia dar um soco na parede caso sentisse raiva por outro motivo, desde que isso reduzisse sua raiva, e isso seria uma explicação suficiente.

    É fato que o roubar, nessa análise, nada faz em relação às contingências incontroláveis que geram ansiedade. O comportamento é controlado puramente por um estado interno, sem nenhum efeito no ambiente externo, ou nas contingências que geram esse estado interno. Isso soa meio mentalista para mim.

    Não acho que a análise esteja equivocada por isso, mas me incomoda um pouco. Mas tudo bem, porque na falta de elementos adicionais, não existe outra explicação possível para o roubar.

    Comecei a entender o cortar-se dessa forma. Dos meus pacientes, aqueles que se cortam descrevem um ambiente de pressão muito intenso, sem possibilidades aparentes de eliminar ou reduzir essas fontes de pressão/controle aversivo, e descrevem também uma sensação de alívio muito grande quando se cortam. Da mesma forma, sempre me incomodou considerar que o reforço principal do cortar-se é o alívio, mas não parece haver outra explicação possível.

    Estou com um caso interessante de TOC, e essa sua análise está me ajudando a interpretar umas coisas de um jeito muito louco. Em um certo sentido, você poderia dizer que o roubar é uma forma "simbólica" de lidar com problemas com os quais o paciente não consegue lidar... estou fazendo uma leitura de sintomas obsessivos/compulsivos de forma semelhante.

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  6. Ah, quero dizer também que estou mandando todo mundo que eu conheço ler essa análise porque acho um exemplo perfeito de como uma análise funcional pode ser feita de maneira eficiente e não simplista.

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  7. Entendo a preocupação com a possibilidade de estarmos tratando de uma variável interna. O que penso que ocorre é que as variáveis ambientais que produzem ansiedade aguda são subtraídas. Você está na iminência de ser surpreendido roubando, mas, em seguida, já não está mais. Seria como se eu, ao me incomodar com a água fria de uma piscina da qual não tenho condições de sair, despejasse subitamente um balde de água gelada na cabeça, modificando assim momentaneamente minha sensibilidade em relação à temperatura da água da piscina. No caso, parece que ocorre uma operação estabelecedora, que, por meio da exposição a estímulos controláveis, modifica momentaneamente a função dos estímulos incontroláveis. Tudo aquilo que estava me deixando muito ansioso, momentaneamente já não me deixa ansioso ou me deixa apenas um pouco ansioso. Valeu por divulgar a postagem, Nicolau!

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  8. Com relação ao cortar-se, talvez possamos pensar na hipótese da indução de respondentes de liberação de beta-endorfinas na corrente sanguínea. Mas, é claro, cada caso é um caso, e não podemos esquecer que ferir-se muitas vezes produz atenção de pessoas que se importam com aquele que se fere.

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  9. Marcus,
    muito interessante e pertinente sua análise sobre a cleptomania. Esta classe de respostas parece pertencer a outra classe maior que seria a das compulsões como o comer compulsivo,a tricotilomania,o jogar compulsivo,as adicções,etc...Seria muito legal dar continuidade ao assunto,tanto em discussão quanto na escrita.Vejo uma enorme carência de descrições de casos clínicos que façam uma análise ontogenética do cliente mais completa e aprofundada.Quem sabe não é a hora de começar a produzir isso?
    Um grande abraço!
    Hérika

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  10. Oi Hérika,

    Obrigado por comentar! Também sinto falta de publicações analítico-comportamentais com descrições e análises ontogenéticas mais detalhadas dos casos. Concordo que seriam importantes. Penso que há casos de comportamento compulsivo que podem estar relacionados a aspectos filogenéticos relevantes. Pretendo escrever algo sobre a síndrome de Lesch-Nyhan, que envolve comportamento compulsivo, mas ainda estou fazendo um levantamento de publicações a respeito. Atendo um cliente com a síndrome, o que tem me feito aprender muito, principalmente quanto a considerar a importância de aspectos filogenéticos e como eles podem produzir sensibilidades muito atípicas às contingências. Um dos problemas de fornecer muitos detalhes sobre casos clínicos é que isso pode ser inconveniente para o cliente. Fico imaginando se um terapeuta me solicitasse autorização para escrever sobre mim. Sinceramente, não sei se eu me sentiria à vontade.

    Abração!

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  11. Marcus,
    Isso pode variar de cliente para cliente.Isso pode não ser tão incômodo assim para algumas pessoas.
    Vamos continaur esta conversa,ela muito me interessa!
    Um abraço,
    Hérika

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  12. Muito Obrigado Vinicius, estou com um caso de uma criança de 11 anos que apresenta esse comportamento, procurei por artigos e me deparei com a mesma dificuldade que encontrou, a falta de material publicado sobre o tema!

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